No dia 27, deixei minha casa rumo à ilha de Sumba, no Leste da Indonésia, com o coração cheio de expectativa e a mente preparada para mais uma etapa de consultoria bíblica. Após três voos, cheguei a Tambolaka, onde fui recebido pelo irmão Lucas, um servo de Deus da região de Sumba Barat.
De lá, iniciamos uma jornada desafiante: atravessar as montanhas em um carro traçado até alcançar a vila Tanyang, no alto das colinas da província de Sumba Tengah, quase na divisa com o Leste de Sumba. A vila está à beira-mar, cercada por vastas planícies cobertas de grama natural e uma única espécie de árvore que domina a paisagem. Por ser estação de chuvas, tudo estava incrivelmente verde e vivo — uma verdadeira pintura da criação de Deus.
Chegamos por volta das 18h, com o sol ainda alto, e nos hospedamos na Igreja Cristã de Sumba, uma igreja reformada que coopera com a SIL Indonésia e que foi a responsável por me convidar para revisar a tradução oral do Evangelho de Lucas feita pelo povo Mamboro. Lá estavam me esperando o pastor Musa e a equipe de tradutores. Foi uma alegria reencontrar o pastor Musa, com quem compartilho memórias de outras missões e encontros na caminhada da tradução da Bíblia.
Nosso contrato de trabalho era intenso: das 8h da manhã às 21h da noite. Desde o primeiro dia ficou claro que esta seria uma das consultorias mais desafiadoras que já enfrentei. Ao escutar as retrotraduções dos primeiros áudios, percebi algo preocupante. A tradução estava incoerente, sem naturalidade, parecendo cópias adaptadas da versão NVI em Indonésio. Quando questionei os tradutores, eles demonstravam não entender bem os próprios rascunhos e frequentemente recorriam à Bíblia em Indonésio para me explicar o texto. Isso revelava uma desconexão entre o conteúdo traduzido e a compreensão real do texto bíblico na língua materna.
sentado com alguns membros da equipe de tradução esperando o jantar
Naquela noite, contive minha frustração e dediquei-me a entender melhor o método e as qualificações da equipe. Descobri que, por causa de várias rejeições da consultora anterior — que seguia uma abordagem mais literalista —, os tradutores haviam perdido a motivação e se limitavam a ler uma versão bíblica em indonésio, sem produzir uma verdadeira retrotradução. Muitos se justificaram, culparam o treinamento limitado, os recursos escassos, e até uns aos outros. No fundo, estavam confusos e desanimados.
Uma Reunião com a Equipe de Tradutores para Descutir a Qualidade e Extratégias de Tradução
Foi um momento de decisão para mim. Humanamente falando, seria compreensível reprovar o trabalho e retornar para casa. Mas naquele mesmo dia, ouvi o testemunho do irmão Danial que tocou profundamente meu coração: ao testar os áudios em sua vila — onde a maioria segue a religião animista Merapu —, 35 pessoas entregaram suas vidas a Cristo, apenas ouvindo os rascunhos ainda inacabados da tradução. Em outra vila, um muçulmano se converteu.
Aula de Panorama do Novo Testamento, para capacitação dos tradutores
Dez membros da família de Danial estavam prontos para o batismo após ouvirem a Palavra em sua língua. Como ignorar esse mover do Espírito Santo? Entendi, então, que Deus já estava usando esses rascunhos imperfeitos para transformar vidas. E percebi minha missão ali: não apenas revisar traduções, mas pastorear, ensinar e capacitar aqueles irmãos para uma nova fase — um projeto verdadeiramente oral, centrado na fidelidade bíblica e na clareza cultural.
A partir do segundo dia, estabelecemos um ritmo de revisão de cinco áudios por dia, sempre complementando com estudos práticos sobre tradução oral, exegese, panorama do Novo Testamento e princípios básicos de como lidar com termos difíceis. Aos poucos, o ambiente foi mudando. Eles começaram a compreender os propósitos da tradução, e eu passei a reconhecer os dois anos de esforço da equipe como tentativas genuínas de servir ao Senhor, mesmo com limitações.
Um dos momentos mais marcantes foi quando chegamos à análise de Lucas 7:48, onde Jesus declara: “Os teus pecados estão perdoados”. Quando perguntei como expressar esse conceito em Mamboro, me disseram que a palavra “perdão” não existia na língua. Isso me chamou atenção, mas eu sabia por experiência em outras línguas da região que o conceito certamente existia, mesmo que lexicalmente fosse diferente.
Criei então uma história hipotética: imaginei que um tradutor roubou o búfalo de outro e o caso foi levado ao governo local. Perguntei como a comunidade resolveria a situação. Um dos tradutores explicou que, quando o culpado confessasse o erro dizendo: “Eu errei, lembra de mim novamente”, o ofendido, pressionado pela cultura e pelas autoridades, deveria perdoá-lo dizendo:
Seguido de um abraço e um beijo tradicional no nariz (um cumprimento tradicional entre as pessoas de Sumba). O perdão, para eles, estava profundamente enraizado na ideia de recordar e reintegrar o ofensor à comunidade. Não perdoar, por outro lado, era expresso como o ato de esquecer — ou seja, excluir, ignorar, cortar os laços sociais.
Esse foi um tesouro cultural que redefiniu a forma como estávamos traduzindo o conceito de perdão. Com base nisso, ajustamos o texto de forma a comunicar não apenas a ação de Cristo, mas o valor e a beleza do perdão conforme compreendido na cosmovisão Mamboro.
Infelizmente, no início da segunda semana adoeci. Tive febre, dor de garganta, calafrios à noite e uma tosse persistente. Mesmo assim, continuei trabalhando durante o dia, e à medida que a equipe ganhava confiança, conseguimos revisar até dez áudios por dia. Eu fazia a retrotradução ao vivo com um dos tradutores, o que me deu mais clareza sobre o conteúdo em Mamboro.
Culto de encerramento da consultoria de tradução Mamboro
Encerramos o trabalho no dia 5, e no dia 6 viajei para a cidade de Waitabula, onde busquei tratamento médico enquanto espero meu voo de retorno, marcado para o dia 9 às 11h. Estou melhor, sem febre e dor de cabeça, mas ainda tossindo e com muita sede. A recuperação está em andamento.
Recebendo um presente tradicional da equipe de tradutores: Uma manta tecida a mão, com desenhos do povo local
Saí de Mamboro com o coração grato. Deus me ensinou que, mesmo quando tudo parece inadequado aos nossos olhos, o Espírito Santo continua a agir. A Palavra de Deus, quando encarnada na língua do coração, rompe barreiras culturais e transforma realidades.
O que começou como uma consultoria técnica terminou como uma experiência de discipulado, reconciliação cultural e renovo espiritual.
Muito obrigado por fazer parte desta jornada comigo!